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quarta-feira, 13 de junho de 2012

O TEMPO


O TEMPO

pagina recebida através de psicografia mediunica - relato de um desencarnado

Sombra espessa anuviava-me o pensamento...
Férreos dedos invisíveis constrangiam-me o coração.
Seria a aproximação do fim do corpo? Minha consciência aturdida semelhava-se a uma
avezita a esvoaçar numa furna povoada de horripilantes serpes.
De repente, no entanto, num milagre de alegria e de luz, vi-me lépido, a distancia da
câmara sombria, como se houvera despido a pesada túnica dum pesadelo.
O crepúsculo velava rápido o céu, e eu, por mais que ansiasse retomar o caminho do
refúgio doméstico, a fim de anunciar a boa nova, sedento de comunhão espiritual no
santuário do amor puro, não conseguia atinar com o rumo certo.
Seguia eu estrada diferente, em paisagem nunca vista. Larga avenida, marginada de
arvoredo e flores, estendia seu piso de saibro argenteado, sobre o qual se refletiam as
lucilantes estrelas.
O vento fresco brincava por entre a ramagem perfumada, que respondia em doces
acordes, como se ocultasse harpas intangíveis, enquanto a noite acendia novos astros,
na imensa cortina azul do firmamento.
E eu seguia, seguia sempre, colhido em êxtase intraduzível.
Meu corpo fizera-se leve e ágil como nunca, e embora sustentasse o impulso natural da
marcha, comandando a mim mesmo, tinha a impressão de que jornadeava, não para
satisfazer a propósito determinado, mas atendendo a inexplicável magnetismo, porque
não obstante me detivesse, de quando em quando, de olhar fito nas constelações que me
deslumbravam, misteriosas e belas, no lençol anilado do Infinito, caminhava, ébrio de
ventura, à maneira da ave atraída para cima, presa, porém, simultaneamente, ao ninho
terrestre.
Aliviado de todas as preocupações, como se houvera sorvido brando anestésico, fruía
inefável solidão, quando se me deparou indescritível plenilúnio, que banhava o caminho
até às mais remotas curvas...
Dir-se-ia que o astro noturno se aproximava de nós, com afagos maternais, envolvendonos
em suas irradiações de luz prateada.
Só então percebi que não me achava isolado na viagem maravilhosa.
Sob o palio da suave claridade enxerguei longa procissão de vultos silenciosos, entre os
quais me perdia.

Alguns se destacavam nítidos e tão livres, quanto eu mesmo; outros, porém, se
agarravam uns aos outros, como se temessem o desconhecido... Mulheres, de rosto
semivelado por cendal semelhante a evanescente neblina, sustinham companheiros que
me pareciam heróis repentinamente enlouquecidos, tal a expressão de beleza e de pavor
que se lhes estampava no semblante inquieto, ao passo que anciãos, aureolados por
tênues reflexos de luz colorida, carregavam jovens dormentes, lembrando pais orgulhosos
e felizes, que amparassem filhos enfermos...
Desejei gritar a minha ventura e confundir-me entre os viajores, aos quais me sentia
inesperadamente irmanados, mas veludosa mão selou-me os lábios ansiosos, enquanto,
erguendo os olhos, divisei ao meu lado a presença de simpático velhinho, que me
abraçava, risonho, informando:
- É inútil, sigamos!
Onde ouvira, antes aquela voz grave e cristalina? Em que sitio convivera com o
venerando companheiro, cuja aproximação me banhava em ondas de paz indefinível?
Não tive tempo de refletir, porque, de repente, soberbo espetáculo se descerrou à nossa
vista.
A brilhante avenida desembocou numa praça majestosa, em cujo centro se levantava
magnífico santuário coroado de flores resplandecentes.
Ladeado de torres translúcidas que varavam o zimbório estrelado, acolhia ela a multidão
de peregrinos que afluíam ao interior, tomados de reverência e espanto mudos.
No recinto, misterioso e amplo, não se elevavam altares nem se mostravam dísticos de
qualquer natureza; mas ao longo das arcadas imensas, talhadas em substância lirial, qual
se fora argamassa de neve, pendiam guirlandas de rosas luminosas, que em todas as
direções expediam sutilíssimo aroma. Nem candelabros, nem quaisquer outros luzeiros
compareciam no recinto sublime...
Cada flor parecia possuir intangível coração de luz e, todas, aos milhares, inundavam o
silêncio ali reinante de verdadeiro clarão dum castelo de fadas...
No centro, erguia-se radiosa tribuna, caprichosamente esculpida e lembrando um lírio
enorme, a elevar-se da base. Reflexos esmeraldinos cercavam-lhe os contornos de
filigrana prateada, e sutil poeira luminescente como que descia do alto, aureolando-a de
vivas fulgurações.
Centralizávamos no púlpito estranho o nosso olhar, como se ele resumisse os objetivos
que nos arrebatavam até ali.
Viajantes, anônimos para mim, chegavam aos magotes, penetrando o espaçoso recinto
através de todas as portas escancaradas e, quando o santuário pareceu repleto,
aveludada cavatina começou a fazer-se ouvir, enlevando-nos dos corações.
Grande maioria prosternou-se, de joelhos, e, eu mesmo, de alma ferida nas cordas mais
íntimas, deixei que o pranto me corresse dos olhos, recordando o lar terrestre de que me
havia distanciado.
Flautas e violinos, ocultos na abóbada por tufos compactos de flores, pareciam
manejados por artistas invisíveis que, a meu ver, seriam anjos enviados do paraíso...
Quando a música fundiu as nossas emoções num só impulso de alegria e de amor,
reparei que Láctea nuvem se fizera visível na tribuna, agora envolvida em grande halo
dourado; pouco depois, essa névoa se transmudava na respeitável figura de um
sacerdote, que nos estendia os braços, velados numa túnica de imácula brancura, em
largo gesto de bênção.
Quem seria a singular personagem? Hierofante de mistérios remotos ou internúncio de
novas revelações?
Tentei dirigir a palavra ao ancião que me acompanhava mais de perto; entretanto, o
mensageiro que tão presto se materializara, ante nossa intraduzível assombro, começou
a falar em tom comovido:
- Irmãos, que vos reunis neste santuário repousante, procurando a paz que vos falta na
Terra, descerrai a mente ao influxo divino que desce em largos jorros dos mananciais
inesgotáveis da Bondade Infinita!...
Toda alma é templo vivo, que guarda ilimitada reserva de sabedoria e de amor.
Quem vos declararia deserdados dos tesouros universais, quando sublimes celeiros de
bênçãos se amontoam no mundo, ao redor de vossos pés? Como não louvar o poder
soberano que vos quinhoa de alegrias e possibilidades sem fim, na estrada que trilhais?
Colocados em pleno céu, sob os raios vivificantes do Sol que vos ilumina, recebestes,
para a romaria da perfeição, acolhedor paraíso de graças que se renovam e multiplicam
com as horas, rico de fontes que vos deliciam e de flores que se humilham diante de
vossa mão.
Como descansar ou entregar-se à fadiga, quando o caminho vos reclama a energia
santificante?!...
Atentai para o suprimento celestial, que sustenta os ninhos perdidos na charneca e
alimenta os lírios que desabrocham no pântano! Estendei para cima os fios do
pensamento!
A lâmpada que se mantenha perfeitamente ligada à sede de força produz claridade
contínua e benfeitora.
Como chegastes a descrer da lei de renovação, que mantém os mundos suspensos na
imensidade e revigora a corrente dágua humilde e rumorejante, aparentemente esquecida
na floresta?
Toda vez que duvidais de vós mesmos, da vossa capacidade de progresso e de serviço,
duvidais do Criador que nos destinou à glória eterna!
E, apontando com a destra o Alto, exclamou:
- Vede! As constelações nas alturas se harmonizam como membros vivos da família
universal! Por que não vos curvardes também, perante a harmonia que nos governa,
dentro da vida majestosa e sem fronteiras?
Nesse instante, valendo-me da pausa do orador, ergui os olhos tímidos e reparei que as
paredes do santuário, inclusive o teto e as torres altíssimas, se haviam transformado em
matéria algo transparente, deixando perceber o sublime painel da noite embalsamada de
aromas, sob os doces eflúvios de milhões de estrelas.
As rosas aumentaram de brilho e a nave emitia faiscantes cintilações.
Relanceando os circunstantes verifiquei que todos se mantinham na mesma posição de
expectativa e deslumbramento.
Flores minúsculas, de tenuíssimo azul, choveram profusamente no recinto, tocando-nos
de leve a fronte e desfazendo-se em perfume à altura de nossos corações, como se o
Céu desejasse impregnar-se de renovadas energias.
Insofreáveis comoções me convulsionaram o ser e uma torrente de lágrimas desabou de
meus olhos...
Que mundo era esse de atmosfera estranha e rarefeita, onde o mágico poder da idéia e
da palavra modificava a matéria em sua mais íntima natureza?
Lembrei-me, então, dos que deixara longe, perdidos no turbilhão da carne escura e
lodacenta.
Asfixiante saudade oprimiu-me o peito e tentei fugir, ébrio de alegria, para buscar os entes
amados e convencê-los da certeza da vida eterna, mas o venerável sacerdote,
fascinando-nos com a eloqüência e a ternura que lhe fluíam do verbo inspirado,
continuou:
- Que paz pretendeis neste remanso de reconforto? Não estareis, porventura, fugindo à
coroa do trabalho, antecipando-vos ao justo repouso?
A cada um de vós concedeu o Senhor bendito campo a lavrar. O terreno é a escola da
experiência, o arado é o corpo.
Desfrutais a bênção do lavrador que se levanta com a aurora, que semeia sem exigências
e que se louva no suor em que se purifica e engrandece?
Ignorais acaso que para receber com abundância é preciso dar com liberalidade?
Não vos pergunto aqui se dispondes de riqueza metálica para auxiliar os semelhantes, de
vez que o ouro do amor jamais escasseia nos corações cheios de boa-vontade. Não
indago se sois livres para ajudar, porque os filhos da legitima caridade se honram na
oportunidade de servir. Não cogito de vossa cultura intelectual, porquanto a Providência
Celeste, antes de tudo, se utiliza daquele que faz o bem.
Em todos os séculos, respiram na esfera dos homens as almas envilecidas que montam
guarda nos tenebrosos abismos da usura, que constroem a estrada larga da liberdade
destrutiva, fomentando a indisciplina e que se revelam ativas nos cálculos e entorpecidas
nas boas obras.
E, em tom diverso, que me abalou as profundezas do espírito, inquiriu, amorável e
terrível:
- Eu vos pergunto pelo tempo, irmãos, pelo tesouro das horas que o Doador Supremo vos
concedeu no desdobrar dos dias.
Pergunto-vos por essa riqueza, comum a todos, porque os minutos são uniformes para os
bons e para os maus.
Cada um de nós estrutura o destino, dentro do tempo, patrimônio de Deus, que usamos
segundo a nossa vontade. Somos artífices de nós mesmos, de nossa ascensão ou de
nossa queda.
Somos aquilo que gravamos na tela das horas.
Nossos veículos de manifestação, a saber, nossas qualidades características, tendências
e dons, com todos os atributos da personalidade visível e oculta, constituem o reflexo de
nossas criações interiores. Que fizestes, pois, da benção de cada dia para vos revelardes,
assim, desalentados e vacilantes? Em todos os pontos do círculo de abençoado trabalho
em que vos agitais, surgem charcos de ignorância e miséria, recrutando-vos à glória de
ajudar e redimir... Chagas sanguinolentas de aflição e discórdia infestam o organismo
social de que sois agentes vivos, rogando o socorro de vossa fraternidade, auxílio e
perdão...
Que fizestes de vosso tempo, nas leiras de luta e de amor que fostes chamados a
cultivar?
Aprendestes com o Mestre Crucificado que o maior do mundo será sempre o servo de
todos?
Que espécie de serviço realizastes para exigirdes a graça do auxílio, quando sabeis que o
próprio Cristo não alcançou a ressurreição de esplendores sem a cruz de trevas?
A paz não é dom gratuito e, sim, fruto divino do coração.
Crede! O Universo é a congregação infinita de sóis que se multiplicam no Ilimitado;
entretanto, nunca abandonareis o cubículo da Terra sem aparelhar as próprias asas.
Chumbados ao chão do Planeta, enquanto vos agarrardes ao negro visco do “eu”,
exibireis mil formas no curso dos séculos, à maneira das sementes que germinam,
florescem e morrem, encasuladas no solo, para nascerem de novo, em obediência às leis
da Natureza que, em tudo, é o sólio externo do altíssimo!
Proclamais a fadiga como credencial para consolo celeste; entretanto, é imprescindível
conhecer a causa do vosso cansaço.
Quantas lágrimas enxugastes? Quantas noites despendestes à cabeceira dos
desamparados do mundo? Quantas horas já destes ao triste, ao miserável, ao aflito, ao
canceroso? Quantas vezes fizestes sorrir a esperança nos corações derreados pela
desilusão? Quantos pensamentos de verdadeiro amor aos semelhantes emitistes nos
caminhos do tempo? Quantas criaturas conduzistes? Quantos irmãos sem refúgio
encontraram em vosso espírito o sustento e o incentivo de viver? Quantas dores
mitigastes? Quantas luzes acendestes?
Interrompeu-se o sacerdote, e as vozes de um carrilhão, que se me afigurava composto
de mil sinos, ressoaram na abóbada, como se nos achássemos num encantado reduto de
duendes.
As objurgatórias da elocução como que nos haviam acordado para a grandeza da vida.
Extrema palidez marcava todos os semblantes.
Refleti, então, nos dias longos, que deixara passar sem a benção de um sorriso sequer
aos infelizes companheiros da estrada...
Vi, dentro de mim, a procissão de rostos pávidos a desfilar, incessante, na via pública, e o
choro aflitivo de milhões de crianças desprezadas penetrou-me o adito do ser.
Revi o pretérito descuidoso e risonho, e, no lance dum simples minuto, minhalma recolheu
a visão de todos os infortunados que peregrinaram em meu roteiro, sem uma réstia de
esperança, relegados à fome de pão, de agasalho, de afeto e de luz... Acima do turbilhão
que se desdobrava aos olhos de minha imaginação, escutava a frase bíblica, que o
Senhor dirigiu a Caim, transviado: - Que fizeste a teu irmão?
Não pude resistir, passivamente, à angústia que me tomara o íntimo.
De chofre, levantei-me e sai.
O mundo distante chamava-me, imperioso...
Por mais que desejasse prosseguir na catedral de neve translúcida, não consegui...
A mensagem daqueles sinos desconhecidos abalava-me a consciência. Devia ser a voz
da própria vida perguntando pelos minutos que eu perdera.
Ninguém me deteve.
A breve trecho, surpreendi-me em pranto convulsivo, no seio infinito da noite estrelada,
como se me despenhasse, lentamente, dos cimos de um palácio à profundez do
insondável abismo.
O tempo!... O tempo!...
Era necessário valoriza-lo, enche-lo, de claridades e de bênçãos eternas, com quem
espalha um tesouro divino para, em seguida retornar com os galardões da vitória aos
santuários da imortalidade!...
De improviso, encontrei-me no quarto, em que me aguardavam o transe final.
Abri dificilmente os olhos e contemplei os rostos piedosos que me vigiavam o leito...
Quis falar e gesticular, descrevendo tudo quanto vira e ouvira no castelo revelador do
plano espiritual, mas os meus braços se mantinham imóveis e minha boca estava hirta.
Tinha eu agora esclarecimentos que não podia transmitir, notícias que era incapaz de
desvelar, e sonhos que não me era dado contar.
“Ó Senhor!... – pensei – poupa-me ainda...”
Mas o mesmo ancião do caminho iluminado fez-se-me visível e repetiu as palavras:
- É inútil. Sigamos!
Obscureceu-se-me o raciocínio, como se a pesada sombra baixasse do Aldo sobre mim,
e, quando me reconheci desembaraçado da carne, iniciei outra caminhada, chorando,
chorando amargamente...

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